sexta-feira, 12 de junho de 2015

O monstro que Humberto de Campos teve que enfrentar


Depois de uma certa briga pela façanha da criação do Monstro, a Dor e a Morte resolveram entrar em acordo. Elas não iriam recriar o estranho ser, dotado de barro e de água, mas influenciar uma pessoa no sistema de ideias que esta iria se comprometer a fazer.

Certa vez, Humberto havia lido um livro que um caipira de uma cidade do interior de Minas Gerais havia escrito. O mineiro, de uma maneira ao mesmo tempo ingênua e delirante, quase infantil, afirmava que não era ele que havia escrito o referido livro, mas uma multidão de poetas e escritores de diferentes movimentos literários, além de alguns outros não necessariamente literários mas afeitos a escrever alguma mensagem em verso ou em prosa.

Humberto, a princípio, parecia ter acreditado na história do caipira mineiro. E até fez que reconheceu semelhanças poéticas com os respectivos autores. Talvez essa impressão, que soe como uma boa-fé, tenha sido feita mediante uma leitura apressada dos livros, ou então Humberto estaria jogando com sua fina ironia, e talvez até admitisse, no íntimo de sua alma, que os poemas apenas se assemelhavam, mas não era garantia de autenticidade de que foram escritos no além.

Daí que Humberto, ainda tomado de sua primeira impressão, preferiu se queixar da concorrência dos autores do além à produção dos autores vivos, criando uma insólita competição literária que perturbaria a expressão dos autores que, vivendo na Terra, ainda estavam a produzir obras novas, já que, neste caso, teriam que competir com as produções vindas do mundo dos mortos.

O comentário irônico causou estranheza e Francisco - este era o nome do caipira - não parecia ter gostado da resenha que misturava uma simpatia viscosa e uma crítica mordaz ao seu trabalho. Esperava o caipira que houvesse algum elogio às mensagens de conteúdo religioso que Francisco inseria, fosse que fosse o autor morto atribuído, seja ele ateu, católico, espírita, evangélico, laico etc.

Pouco tempo depois, Humberto adoeceu. Ele estava escrevendo suas memórias mas a doença avançou tanto que ele não conseguiu encerrar seu trabalho. Fraco e debilitado, morreu sem antes chegar aos 50 anos, estava a dois antes desta idade. E, pouco tempo depois, a Dor e a Morte, que já haviam entrado em ação para instruir Francisco, resolveram entre si que era a hora de agir.

O caipira era dado a gostar de gente que morre cedo, algo que deixou a Morte feliz. E também via algum exotismo nas comoções familiares, o que agradou em cheio a Dor. E certa vez o jovem Chico - este era o apelido de Francisco - sonhou com alguém que tinha a aparência de Humberto que perguntou se o jovem era o menino que havia lançado aquele livro.

A partir daí, Francisco resolveu brincar com o legado de Humberto. Sabendo que ele era ateu, Francisco resolveu transformá-lo num sacerdote, como uma revanche contra aquela resenha sinistra e sem os desejados elogios à obra do caipira. Sem necessariamente reproduzir o estilo prosaico de Humberto, Francisco escrevia textos com linguagem mais solene e cheias de referências religiosas, tantas que fazia os incautos acreditarem que Humberto não tivesse vivido entre o Nordeste brasileiro e a então Capital Federal, o Rio de Janeiro, mas em algum templo sagrado da Judeia.

A prosa que Francisco havia escrito usando o nome de Humberto causou estranheza nos meios literários. A diferença de estilo era gritante, e, em vez da prosa elegantemente simples de Humberto, havia a prosa excessivamente solene e depressiva e melancólica, mas de leitura pesada, dessas que forçam demais a barra pelo pretenso eruditismo que, eventualmente, indicam uma escrita atrapalhada e carregada, de difícil compreensão.

A confusão esteve armada e a Dor e a Morte assistiam de camarote o tumulto que seu criado Francisco teria que enfrentar. A viúva de Humberto, juntamente com seus filhos, resolveram entrar na Justiça pedindo que se verifiquem essas obras estranhas, para que, se caso fosse provada a autoria espiritual, a família recebesse uma parcela dos direitos autorais, e, caso contrário, Francisco e a instituição a que este era ligado, teriam que pagar multa por apropriação indevida do home do falecido.

A questão não era lá precisa, e os juízes, dentro daquele padrão jurídico da distante década de 1940, não entenderam a questão e julgaram o processo inconveniente. Deram empate, no parecer jurídico, o que frustrou os familiares de Humberto, que tentaram recorrer da decisão.

A Dor e a Morte pularam de alegria, porque era um empate que rendeu pontos a Chico. Este continuou usando o prestígio de Humberto, mas inventou um certo codinome Irmão X, sabendo dos pseudônimos que Humberto usou e resolvendo parodiar essa prática. No mais, Chico levou adiante a narrativa excessivamente religiosa, em textos taciturnos, enquanto dava sequência a outras atividades paralelas, incluindo a de um médico imaginário que estava vivendo numa suposta cidade espiritual, personagem que mais parecia um rascunho de algum herói de ficção científica de segunda categoria.

A Dor e a Morte resolveram então transformar Francisco num mito. E devem ter falado com ele:

- Vamos fazê-lo transformar num mito permanente, que sobreviverá à sua própria morte, e terá seguidores que o verão como uma figura divinizada, como um quase Deus! - disse-lhe a Morte.

- Mas eu vou morrer daqui a pouco? E que mito vocês querem que eu me transforme? - perguntou Francisco, assustado.

- Não, você morrerá bem velhinho. Você será um mito muito poderoso. O mito é que viverá após você ter morrido, tanto quanto em vida. Mesmo com sua instrução mediana e sua ignorância em muitas coisas, você será visto como um sábio absoluto, e para o qual serão atribuídas qualidades excepcionais. Dependendo do contexto, você será reconhecido até como cientista e filósofo. Você terá grandes protetores e, ao menor desgaste de sua imagem, seus seguidores voltarão a exaltá-lo lembrando das frases que você disser. - respondeu a Dor.

- Mas, como assim? Eu não viverei a minha vida? Eu apenas falo com mortos, minha mãezinha, o jesuíta, rabisco algumas coisas e ponho a autoria para a gente do além, só isso. Como é que eu poderei ser cientista, filósofo ou coisa parecida? - perguntou Francisco, ainda espantado com a situação.

- É simples. Faça o que a gente disser. - avisou a Morte.

- À dor, você terá que exaltar as virtudes do sofrimento, trazer para mim multidões de pessoas especiais, a sofrerem a desgraça do infortúnio, e invente que o pior dos sofrimentos é um ingresso para as recompensas da pós-morte. - disse a Dor.

- Mas se as pessoas especiais se apressarem em se tornarem socialmente muito influentes, há a eventualidade de eu ceifá-las no auge de suas missões, obrigando-as a adiar seus planos de transformação da Humanidade. - disse a Morte.

- Dessa forma, você cumprirá nosso novo acordo, Chiquinho. - disse a Dor.

- Você tenta convencer as pessoas do pouco valor utilitário da vida material, senão como um meio de subordinação ao arbítrio alheio e a execução do pior sofrimento, mesmo sem motivo aparente, atribuindo a mim a chave das recompensas futuras. - disse então a Morte.

- Nós duas agiremos para enfraquecer as pessoas, criar um ambiente de conformismo e tristeza, e faremos mil retrocessos ao Brasil, que depois, como guia mundial, promoverá outros retrocessos, fazendo recuperar os século medievais, época de nossa profunda diversão e recreio. - disse a Dor.

- E o que eu ganho com isso? - perguntou Francisco.

- Você ganhará uma projeção trabalhando imagens contraditórias. Se você tem baixa instrução, será visto como sábio. Se é fraco e interiorano, passará a ser visto como um líder forte. Se comete erros diversos, será considerado perfeito mesmo assim. Se é moralista e conservador, como todo caipira de seu tempo, será visto como transformador e terá em mãos o julgamento final do futuro terrestre. Sem frequentar uma Faculdade e sendo um simples devoto religioso, você mesmo assim influenciará até quem não compartilha de sua fé e será visto até como cientista, estrategista político e como o maior filósofo do Brasil. - disse a Morte.

- Basta dizer que o sofrimento é maravilhoso, que deve ser vivido sem queixumes, e que a Morte é apenas um privilégio, mesmo para quem morreu cedo e deixou sua missão de vida incompleta ou talvez até natimorta. O pessoal acreditará, mesmo sabendo que, apesar de existir reencarnação, é impossível seguir em uma nova vida a missão humana que foi abortada na vida anterior. - comentou a Dor.

- O que queremos é que você seja o nosso propagandista, para intimidar a humanidade e subjugá-la aos nossos caprichos, enquanto trabalhamos para o retrocesso do Brasil e converter este país em modelo a ser seguido pelo mundo, através da recuperação da Idade Média que tanto nos causa muitas saudades. - disse a Morte.

- Você terá tanto prestígio que ninguém lhe descartará mesmo quando for para recuperar as bases de sua doutrina, ou de defender visões esquerdistas que você não apoia. Você estará acima de tudo e de todos, e mesmo sua figura interiorana a vincularemos a todo tipo de vanguarda.

- Veem lá o que vocês vão fazer comigo. Mas como vocês me garantem que serei popular com tudo isso e serei adorado até mesmo depois de encerrado o meu ciclo vital, aceito de bom grado. - respondeu Francisco.

Assim, a Dor e a Morte não precisaram criar um novo Monstro. Não tiveram necessidade de usar barro e água e brigarem pela autoria do ser. Poderiam agir em parceria, admitindo dupla responsabilidade, e puderam assim transformar o caipira mineiro no verdadeiro monstro que Humberto não imaginou que teria que enfrentar. Um monstro que intimida as pessoas e que parece resistir a todo tipo de obstáculo.

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